“Olhei para os olhos castanhos intensos iluminados pela luz da rua, sentindo que poderia facilmente me perder neles.
Ele inclinou o rosto na minha direção, senti o coração saltar no peito, antes de sentir os lábios macios encostarem nos meus, suavemente.
Todas as lembranças do passado preencheram a minha mente, enquanto sentia Vinícius pousar a mão na minha nuca, aprofundando o beijo. Quantas vezes eu havia fantasiado, imaginando situações em que ele vinha falar comigo, criava conversas inteiras em pensamento, que terminavam sempre do mesmo jeito, com ele dizendo que gostava de mim.
Uma única vez, ele havia falado comigo de verdade, na barraca de tiro que eu tomava conta, durante uma festa da cidade. Comprou algumas fichas e disse:
“Sabe qual é o segredo para acertar o alvo?”
Respondi um não inaudível. Minha voz tinha sumido devido ao nervosismo.
Ele havia apontado a espingarda de pressão, fechando um olho.
“Pensar em alguém que mais odeia.”
E disparara, acertando o alvo.
A tia havia surgido nesse momento, estendendo os braços para receber o brinde: um gato de pelúcia cor-de-rosa.
Vindo de muito longe, ouvi um carro encostar ao lado da caminhonete e abri os olhos. Um som de música vinha do outro carro e através das janelas abertas pude ver Heitor sentado atrás do volante, olhando para nós.
Vinícius afastou o rosto e virou a cabeça, vendo o irmão. Antes que ele pudesse dizer algo, Heitor acelerou e arrancou com o SUV.
Foi tudo tão rápido, que custei para assimilar completamente o que havia acontecido. Vinícius acompanhou com o olhar as lanternas traseiras do carro de Heitor até dobrarem a esquina, mais adiante.”
“Fui atrás de Ariana. Passei em frente ao seu prédio mas não vi o carro dela. Procurei em todos os lugares em que ela poderia estar, em vão.
Ela não atendia minhas chamadas. Eu estava ficando maluco, quando lembrei que aquele era o dia em que o Armazém não funcionava. Fui até lá. Ariana não estava lá, mas Heitor estava.
— Você está com uma cara péssima, Vinícius.
Heitor tinha bebido. Havia bitucas de cigarro no cinzeiro e garrafas de cerveja vazias.
— Já se viu hoje?
Heitor fez uma careta.
— Não estou nos meus melhores dias.
— Devem ser as companhias em que anda ultimamente.
Ele levou uma garrafa pela metade até a boca e deu um trago. Estendeu na minha direção. Recusei.
— Veio me ver?
— Estou procurando Ariana.
— Ariana — Heitor repetiu. — Ela esteve aqui mais cedo, almoçamos juntos, depois ela foi embora. Acho que tinha um encontro. Pensei que fosse com você.
Passei as mãos pelos cabelos, a fim de me acalmar, andando até o princípio da varanda.
— Soube que tia Lívia voltou a morar no casarão — disse Heitor.
Pelo visto, eu era o último a saber.
— Voltou — concordei. —Ana Beatriz também.
— Eu sei, para decepção de Dr. Otávio — Depois de uma pausa, Heitor perguntou: — Vai me contar o que aconteceu ou vou ter que adivinhar?
Voltei para dentro e sentei na frente dele, tentando decidir até onde podia contar com Heitor.
— Ariana e eu tínhamos um encontro, aconteceu uma coisa e ela desapareceu, não consigo entrar em contato nem encontrá-la.
— Que coisa, Vinícius?
Eu não queria falar sobre aquilo, trazer à tona aquela parte da minha vida da qual não me orgulhava nem um pouco.
— Tem a ver com tia Lívia ter voltado? — Heitor adivinhou. Continuou, diante do meu silêncio: — Eu sei o que aconteceu, Vinícius. Há mais coisas que você não sabe. Foi por isso que saí de casa.
Olhei para Heitor mortificado. Revirar aquela história era a última coisa que eu queria, ainda mais com Ariana desaparecida. Mas conhecendo Heitor, se não deixássemos as coisas claras naquele momento, poderia não haver outro.
— Desde quando você sabe?
— Alguns meses. Ouvi uma discussão entre nossos pais, da qual Dona Laura deve se arrepender até hoje.”
“— Você está terminando? É isso?
Tive vontade de pedir para ela não fazer aquilo, eu não queria perdê-la, ela era a melhor parte de mim, a melhor parte da minha vida.
Sinto que sou uma pessoa melhor, desde que estamos juntos. Havia muitas coisas que eu ainda queria fazer com ela, por ela.
— Eu não teria paz de espírito, enquanto você estivesse no Princesa, imaginando o que poderia estar acontecendo, com todas aquelas turistas a bordo.
— Elas sempre estiveram lá, isso não incomodava você antes.
— Antes de eu encontrar o número do telefone de uma delas no seu bolso.
Contra isso eu não tinha argumento. Ela me conhecia, sabia que nunca fui santo, mesmo assim me deu uma chance, confiou em mim, e eu havia estragado tudo.
— Eu prefiro ter você como amigo, do que acabar odiando como namorado — completou Ariana, jogando uma pá de cal nas minhas esperanças.
Eu sabia que, se terminássemos ali, não voltaríamos a ser amigos. Eu voltaria para a minha antiga vida, da qual ela havia me tirado, para a qual ela não voltaria para me tirar outra vez.
Respirei fundo, tentando manter o controle. Era a primeira vez que eu experimentava aquela sensação de sufocamento, com vontade de pedir a ela para não me deixar, mas ao mesmo tempo sabendo que eu não faria isso, mesmo vendo ela sair da minha vida.
— Eu amo você. Sabia? — sussurrei.
Era verdade. Do meu jeito, mas eu a amava. Nos dois anos que ela passou longe, eu comparava todas que passavam pela minha vida com ela, sem me dar conta, numa busca contínua de alguma coisa que elas não tinham, porque não eram ela.
Ela era quem eu sempre procurei.
E a perdi, no momento em que descobria o quanto eu a amava.”
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